Tudo Que Você Podia Ser. Canção de Lô Borges, mais conhecida na interpretação de Milton Nascimento, que abre o disco Clube da Esquina.
Tenho ouvido ela em looping nas últimas 24 horas. Mais especificamente, a versão do Quarteto Em Cy. Gosto das vozes aéreas e femininas no eu lírico que percebe o protagonista.
Uso ‘percebe’, porque não chega a aconselhar. Observa e descreve, não de forma passiva, tampouco distante. Em alguma medida adverte, chega a protestar esse distanciamento. Me remete à figura de um anjo da guarda ou uma consciência, uma voz que o protagonista não quis ouvir.
Não se lembra mais de mim Você não quis deixar que eu falasse de tudo
Não pretendo analisar a música em suas referências ao período ditatorial, à condição de exílio, ao fim sonho revolucionário e etc - que claro, estão presentes na composição e são indispensáveis para a compreensão da obra.
Aqui, pretendo falar sobre a temática da potência – aquilo que podemos vir a ser. E o seu contraponto, o medo - o impulso de voltar à estagnação.
A música se organiza em três tempos. O primeiro - tempo passado, em que se sonha com o futuro, quando nos projetamos grandes protagonistas de nossos caminhos. Um tempo que me remete à infância, quando nos deparamos com a fatídica pergunta de ‘o que queremos ser’. Aqui, não há medo, não há constrangimento, não existe resposta errada. É o tempo em que as aspirações juvenis encontram campo para florescer.
(...) você sonhava Queria ser melhor depois Você queria ser o grande herói das estradas
O segundo momento é de desilusão. No tempo presente, nosso protagonista não vocaliza mais os desejos de outrora, não vive mais um mundo de grandes aspirações. Não acompanhamos o percurso que o levou até o momento atual, mas seu tom agora é de desânimo e fuga. Os sonhos heroicos estão no passado.
Só pensa agora em voltar Não fala mais na bota e do anel de Zapata
O terceiro tempo não é abordado explicitamente na música. Não sabemos sobre o futuro de nosso protagonista. Por isso, reconheço que posso estar extrapolando a interpretação com a proposta de um terceiro tempo, mas defendo que a sugestão de próximos passos é sim presente, e assim, a projeção de um tempo futuro, existe.
Mas não importa, não faz mal Você ainda pensa e é melhor do que nada
Nesse trecho o eu lírico desconsidera a sua chateação com o status atual do nosso herói. Uma espécie de perdão, consolado pela persistência do pensamento. O momento de inação do protagonista não compromete a retomada. O derrotismo não implica na derrota (apesar de aumentar as possibilidades desse desfecho).
Ainda não há desfecho. A história não chega ao fim. Existe inquietação, incômodo, uma pulguinha atrás da orelha, um chamado que possibilita a música. A voz do eu lírico ainda ecoa - e é melhor do que nada.
Você não quis deixar que eu falasse de tudo Tudo que você podia ser...
Apesar da tentativa de calar, a voz canta.
E o sonho?
A música não resolve a questão. Não ficamos sabendo se o protagonista volta a perseguir seus sonhos. Com sol e chuva a história começa, e o nosso herói sonha, e com a perspectiva de sol e chuva na estrada, a obra termina. Tempos e contratempos são parte do caminho.
E nesse percurso, algo se transforma. O verso que se repete em todas as estrofes aparece ligeiramente diferente em cada aparição.
Tudo que você queria ser (...) - 1ª estrofe Tudo que você devia ser (...) - 2ª estrofe Tudo que você podia ser (...) - 3ª estrofe Tudo que você consegue ser... - 4º estrofe Ou nada
Gosto do processo sutilmente sugerido na mudança. Nos sonhos infantis basta o querer, com a progressão o dever passa a reger as possibilidades do ser. Em seguida, vem o que pode ser, a multiplicidade de caminhos. Ao final, a ideia de conseguir parece aterrar os pensamentos e trazer uma questão fundamental: o que está ao alcance?
Pessoalmente, quando eu era pequena e me perguntaram o que eu queria ser, minha resposta foi bastante clara: Sereia.
Apesar de um querer, ser uma sereia não me parece alinhado ao meu dever, tampouco às minhas possibilidades e capacidades. E nem por isso faria sentido concluir que desisti dos meus sonhos.
A desilusão é inevitável a medida que crescemos e vamos deixando de viver em um mundo ocupado quase que exclusivamente pelo lúdico e passamos gradualmente a existir no mundo real, onde responsabilidades e competências vão ganhando valor.
O estado estagnado e derrotista em que nosso herói se encontra é diagnosticado pelo eu lírico (ou pelas eu líricas) como resultado de Medo. O medo pode ser uma força paralisante, um chamado de autopreservação que antecipa derrotas. O medo de falhar condena à falha antes da tentativa.
Quando queremos muito alguma coisa, muitas vezes o melhor conselho é tentar, mesmo sabendo que o primeiro resultado provavelmente não será o desejado. Muitas o caminho para conquistar algo só pode ser conhecido depois das tentativas fracassadas. A estrada é a melhor professora.
E a pior escola é a do não movimento. Quebrar a cara requer coragem.
A quebra de expectativa ao aproximar seu ideal do real faz com que nosso protagonista opte por interromper o seu caminho. Como se no primeiro desencaixe, na primeira adversidade, na primeira chuva, a fantasia dos destinos heroicos se rompesse. Como se o percurso tivesse de ser rápido e fácil, e outra forma colocasse em cheque a predestinação às grandes coisas. (Infantil, né?)
Nos dias de chuva, basta recalcular a rota. Ajustar expectativas. Assumir algum atraso, mudar um pouco o caminho, e seguir andando. Acredito que o segredo para ser um sonhador realista é estar sempre recalculando as rotas.
Isso não faz com que o medo deixe de existir. O medo está sempre presente. Ele surge diante do desconhecido, de situações novas. Ele surge frente às coisas que importam, que tem gravidade, que geram impacto, que implicam risco.
Mas o medo não é uma placa de PARE e não deve ser lido assim. O medo é uma sinalização de cuidado, ele é a luz intermediária do semáforo que pede atenção entre o pare e o siga. Um aviso de que os tempos estão mudando. Mas, ele não deve impedir movimento.
Talvez não sejamos predestinados a muitas coisas (como uma calda e brânquias) e talvez os caminhos sejam inevitavelmente feitos de dias de sol e de chuva, mas isso não é motivo para desistir de acessar Tudo Que Queremos Devemos Podemos e Conseguimos Ser.
"Como se o percurso tivesse de ser rápido e fácil, e outra forma colocasse em cheque a predestinação às grandes coisas."
Gostei da percepção de que a frustração não seja com o fracasso, mas com a sensação de injustiça do fracasso, como se algo dar errado tirasse um resultado que já era seu de direito
Querer --> dever --> poder me parece bem só uma trajetória de realismo. O --> conseguir me passa uma ideia de agência, não basta poder, tem que ir atrás. E acho que o --> NADA! ainda tem um alerta, a advertência mais explícita do eu lírico. "Se não for atrás dessas coisas vai restar só o nada"